sábado, 31 de março de 2018

OLARIAS

OLARIAS

Do barro que sou feito, eu também faço:
Tijolos, telhas, vasos, santos, gentes...
Viver a amassar lama -- sãos ou doentes! --
Mesmo que o pão se veja sempre escasso.

Mas, da casa humilde ao grande paço,
Haverão-d'encontrar bem aparentes
Os sulcos de meus dedos! Entrementes,
Definham meus costados de cansaço...

Isto de ao abstrato dar mais concretude
Traz-me a incomensurável solitude
Com a qual lido desde que m'entendo.

Sem embargo, trabalho por obrar
Até que um dia enfim tenham lugar
Os lares que nos sonhos sigo vendo.

Betim - 31 03 2018

sexta-feira, 30 de março de 2018

DOIS EFEBOS

DOIS EFEBOS

Nus, têm pele de mármore polido
E cabelos em cachos sobre os ombros.
Por entre colunas jônicas, escombros
Do templo de Apolo, o esclarecido.

Eternamente púberes, ao Olvido
Ignoram em seus amores sem assombros.
Enquanto sob as árvores, ressombros
Filtram os raios d'um sol enternecido...

Um ao outro toca a face: abraçados,
Como se a vislumbrar d'olhos fechados
A expressão de gozo em seu amante.

Ei-los: Os dois efebos frente a frente!
Onde lograsse a pedra simplesmente
Reter toda a beleza d'esse instante.

Betim - 29 03 2018

quinta-feira, 29 de março de 2018

ASSOMBRAÇÃO

ASSOMBRAÇÃO

Não andes pela estrada da ribeira,
A mesma que vai dar no mangueiral.
Além d'aquela curva, o bem e o mal
Têm para si uma última fronteira.

Jamais vá por ali sem companheira,
Tampouco adentre ao sítio seu portal:
N'ele vaga alguma alma tal e qual
A que nos vela a noite derradeira...

Apressa-te ao passares sob o luar,
Senão na encruzilhada a atravessar
O medo te domina com sua arte.

Pois muito pior que a morte, este terror
Te livra de armadilhas d'opressor
Que ronda ao teu redor por devorar-te!

Betim - 29 03 2018

quarta-feira, 28 de março de 2018

VESTÍGIOS

VESTÍGIOS

'Inda devem haver restos de nós
Espalhados n'aquela residência.
Onde vestígios já d'outra existência
Debaixo de tudo quanto veio após...

Mas mais vazio há dentro quando sós
A saudade nos preenche toda a ausência.
Como quando uma luz na transparência
Revela em suspensão nuvens de pós.

Eu sem querer t'encontro de repente
E o passado fazendo-se presente
Me traz o teu sorriso uma outra vez.

E me pego sorrindo aqui também
Com meu olhar perdido para o além
A imaginar que tu longe me vês...

Betim - 02 01 2017

segunda-feira, 26 de março de 2018

AQUELA MOÇA

AQUELA MOÇA

Quem era aquela moça que beijei
No sonho que sonhei em pleno dia?
Desconheço-lhe tudo, mas sabia
Ser ela alguém que ainda encontrarei.

Como posso lembrar do que não sei?
Como não pode haver quem só eu via?
Em meus lábios seus lábios eu sentia
N'outro tempo insubmisso a qualquer lei:

Sem passado ou futuro no presente,
Súbito amor alhures se pressente,
Pois presença na ausência presumida.

Ela... Jamais a vi e nunca esqueço!
Reencontro aquela qu'eu tão-só conheço
Do sonho que sonhei por toda a vida...

Betim - 25 03 2018

domingo, 25 de março de 2018

LUNÁTICO

LUNÁTICO

Enquanto quatro fases mostra a lua,
Também eu apresento aos meus iguais
Mais personalidades disformais,
Onde algum mal da mente se insinua.

Penso que quando um eu meu s'extenua
Outro o sucede e, assim, um outro mais...
De modo que com modos impessoais
Evite enfim expor minh'alma nua.

Em vão: Muitos me têm por louco à solta!
Como se fosse à lua alguém sujeito
E andasse sempre ao léu não sem revolta.

Embora não o negue, contrafeito,
Sinto a lua afastar-se a cada volta
D'um mundo cada vez mais imperfeito.

Betim - 24 03 2018

sexta-feira, 23 de março de 2018

OÁSIS

OÁSIS

No meio do meu caminho, haja um lugar
Onde eu queira parar quando cansado.
Lá, me ocupe em estar desocupado
E em contemplar os céus me demorar.

A vida ali transcorra devagar
Como se, sem futuro nem passado,
Pudesse meus pesares pôr de lado
Para mais docemente repousar.

Quedas d'água brilhando contra o sol
N'um chiado permanente mas tranquilo,
Enquanto olho o ir e vir do meu anzol.

E, indiferente em ser eu isto ou aquilo,
Inclinar-me tal-qual o girassol
Grato pela ventura d'este asilo.

Betim - 08 03 2018

LUPERCÁLIA (écloga)

LUPERCÁLIA (écloga)

                 I
Tinha uns olhos buliçosos
D'enxergar tão-só malícias...
Salivando d'antegozos
As rebuscadas delícias
         De jovens belas mulheres.

Face a seus rostos mimosos
Imaginava as carícias
Que, virgens, guardam a esposos...
E busca, mesmo a sevícias,
         Arrancar-se-lhes prazeres!

                 II
Dissimulava, contudo,
A sua extrema avidez,
Passando por sério e mudo
Àquelas que por sua vez
         Lhe admiravam a prudência.

Tomado de cupidez,
Bastava um ombro desnudo,
Ou algum decote talvez,
Para esquecer-se de tudo
         E perder-se na indecência.

                 III
Ele -- homem de meia-idade --
Sempre em roda às raparigas
Quase um lobo, na verdade,
Como o de velhas cantigas,
         À espera da hora mais certa...

Dava-se tal liberdade
Que, com palavras amigas,
Impunha-se a outra beldade
Em meio a suas fadigas
         Ou quando menos alerta.

                 IV
E, obtendo sua confiança,
Sugere um fácil desvio
Que de dedo em dedo avança
Por sobre o peito arredio
         Até que revele um seio...

Ao pôr as ideias em dança
E o corpo donzel no cio,
Goza a súbita mudança,
Com um sorriso sombrio,
         Visto seu secreto anseio.

                 V
Ao fauno s'entrega a ninfa
Nas folhas de doce outono...
Junto à translúcida linfa
Das florestas sem dono
         E seu borbulhar constante.

Longe, uma andorinha grinfa
A despertá-la do sono
Como fosse a paraninfa
D'esse seu só abandono
         Por tão sedutor amante.

                 VI
Clama em vão de tal desdouro
Após que a virtude lhe falha...
Ignora o passo vindouro
E até se chora ou gargalha
         Em face do acontecido.

O outro, grinalda de louro,
Orna-lhe a fronte grisalha!...
Da mesma andorinha, o agouro
Escuta sem que lhe valha
         Mais que um olhar atrevido.

                 VII
Ela seguirá co'a vida
E ele seguirá co'a sua.
Mas a inocência perdida
Para o fauno se insinua
         Tão-somente canalhice.

Já a ninfa adormecida,
Sempre pálida e nua,
Ser-lhe-á a imagem retida
Que em lembranças atenua
         A solidão da velhice.

Contagem - 22 03 2018

terça-feira, 20 de março de 2018

LIVRÍSSIMO

LIVRÍSSIMO

Eu no livro me livro do que ignoro,
E me transporto então para além-mim...
Tudo que era verdade: Não e sim,
Ora soam como um vago desaforo.

Não importa se escrito ao riso ou choro,
Letra a letra me leva para o fim,
Aonde o olhar avança ainda assim
E se perde nos vãos que rememoro.

Porém no livro tomo a liberdade
De ser quem nunca fui; (jamais serei!...)
Seja eu herói, vilão, guerreiro ou rei...

Se em sua fantasia outra verdade
Que já da realidade me desperta
E, para o bem e o mal, a mim liberta.

Belo Horizonte - 20 03 2018

SARAU

SARAU

Vinde bem todo aquele que é bem-vindo!
Assim que atravesseis os meus umbrais,
Comigo o bom da vida desfrutais
Antes que o nosso tempo seja findo.

Se não me acompanhais pelo que é lindo,
Ao menos não choreis d'estes meus ais...
Retribuo-vos com ósculos cordiais
Mil salves ao vestíbulo se ouvindo!

Trazei vossa alegria para a festa,
Certos de que a verdade que nos resta
Cabe inteira n'um cálice de vinho.

Pois, quando vós enfim fordes embora,
Sabereis de mim quanto sei agora:
Eu tão-somente andando tão sozinho.

Betim - 15 03 2018

sexta-feira, 16 de março de 2018

DESQUITE

DESQUITE

Eu não gosto de não gostar de ti
Tanto quanto não gosto d'estar triste.
Acontece que exacto o que anteviste
Revelou-se 'inda pior quando o vivi.

Desilusões à parte, percebi
Que nem o amor aos factos já resiste...
Tudo o que nos passou não mais existe,
Senão vaga miragem do que vi.

Estamos quites como sempre quis:
Devolvo-te de novo ao meu passado
E estás livre de mim, como se diz.

Obrigado por já desobrigado
Da culpa de te ver tão infeliz
Depois de tantos anos ao meu lado.

Betim - 05 05 2005

quinta-feira, 15 de março de 2018

LICENÇA DE USO

LICENÇA DE USO

Tu podes me citar e recitar,
Fazendo o melhor uso de meus versos
Que há algum tempo veem por aí dispersos,
Subscritos pela data mais lugar.

Basta-me a gentileza de indicar
Notas de rodapé ou mesmo anversos
Onde figurem nomes controversos
Aos quais também eu possa me juntar.

Em boa companhia ou já nem tanto
N'outro texto o meu texto mostre o encanto
Com que a palavra escrita me possuiu.

Deixo, assim, de bens maiores ou melhores
Em favor cá d'aqueles escritores
Em que ainda a poesia mal influi.

Betim - 14 03 2018

quarta-feira, 14 de março de 2018

POR ESTUPIDEZ

POR ESTUPIDEZ

A mesma mão que afaga é a que agride...
E a boca que antes beija após maldiz!
É querer longe quem junto se quis
Ou ter a mão já pronta p'ro revide.

Não importa quão bem co'o mal se lide:
Um dia falham todos os ardis!...
E pensar que buscando ser feliz
Para casa um demônio se convide...

Foge como fugisse então da guerra,
Certa que se ficares, logo mais
Ele te deixa exangue sobre a terra!...

Antes estar sozinha mas em paz
Que viver com alguém que a ti aterra
E enfim te mata por te amar demais!

Belo Horizonte - 13 03 2018

sexta-feira, 2 de março de 2018

INÓSPITO

INÓSPITO

Que lugar será esse o coração?
Eu olho e vejo apenas chão maninho!...
Só galhada seca, cacto e espinho,
Onde antes verdejante imensidão.

Não há qualquer sinal ou direcção,
E tudo leva ao mesmo descaminho:
Trás-o monte outro monte eu adivinho
Onde a mais absoluta solidão.

A carga que me pesa sobre o dorso
Parece-me antes culpa que remorso
Depois dos sucessivos insucessos.

E tanto amor que aqui lancei semente
Perde-se, inexorável e somente,
À espera de improváveis recomeços...

Betim - 25 02 2018