sexta-feira, 27 de abril de 2018

A CIDADE AO MEU REDOR - Crônicas d'Anteontem

A CIDADE AO MEU REDOR - Crônicas d'Anteontem

De repente paro no canteiro central da avenida e me sinto rodeado pela cidade. Como se desperto de um sono conturbado, deixo de seguir o fluxo que me impelia a seguir em frente. Paro e observo. Rostos desconhecidos passam por onde também eu acabei de passar: "Eu fora mais um" -- pensei comigo -- enquanto lidava confuso com meu súbito despertar. Carros vêm e vão pelo asfalto sinalizado enquanto a sombra dos edifícios se projeta sobre os largos. Escurecia aos poucos e havia pressa, muita pressa, em tudo e todos que passavam por ali. Apenas eu estava parado.

Embora não fizesse sentido minha hesitação -- se é que se podia chamar de hesitação àquela actitude -- decidi não retornar ao caminho imediatamente. Ao contrário, deixei que o bulício da cidade me envolvesse n'um estranho abandono contemplativo. Era interessante ver a pressa dos outros em contraste com minha apatia, como se eu tivesse conseguido me colocar à parte d'aquela realidade e fosse capaz de percebê-la sem a sentir em mim. Eu era um observador, mas o que observava? Fosse outra a situação, decerto projetaria sobre a cidade em movimento novos espledores e peculiaridades. Mas, não. Tampouco me coloquei ali como cientista social a descrever conflitos urbanos ou como publicitário de agências de viagens para apregoar as excelências do lugar. Humildemente, estava ali com minhas inquietudes e misérias a reconhecer-me no anonimato de cada pessoa que passava, de cada auto que trafegava. Distinguia-me apenas por não ter pressa de sair d'ali. Há quem defenda que o ser humano tenha aversão ao vazio e, por isso, se ocupe em inventar adornos de bom gosto ou histórias tranquilizantes para cada vão percebido no espaço que habita. A cidade ao meu redor, porém -- cenário de existências comuns -- talvez escape d'essa avidez em dar sentido a tudo que caracteriza a existência humana. Ao contrário, tudo o que vejo é a lento decantar de ações humanas n'um lugar que é antes resultado que intenção.  É como a poeira que o movimento constante agita indefinidamente por quilômetros até pousar sobre o concreto e encardi-lo, pintando de cinza escuro todas as superfícies aparentes e apagando todas as marcas individuais capazes de indicar pessoalidade: Monumentos, publicidades, pichações, ornamentos, sinalizações, paisagismos... Qualquer esboço de assinatura de pessoal que tente se impor ao olhar coletivo é continuamente coberto e recoberto pela pátina acinzentada de minúsculos sólidos em suspensão.

Percebo que a cidade resiste a ser obra de indivíduos, apagando nervosa os traços d'este ou d'aquele em sua tecitura. E toda arquitetura e todo urbanismo e todo paisagismo são, no fundo, tentativas meios desesperadas de criar o extraordinário da arte dentro do ordinário da vida metropolitana. O espalhafatoso, o confortável, o dispendioso e o elegante são jogados no espaço urbano no afã de fazer com que o citadino abra seus olhos diante da paisagem quotidiana, mas, sobretudo, são jogados ali para se fazerem assinatura d'um indivíduo cercado por oceano de anônimos. Debalde: Assim como a poeira homogeniza a cidade com seu cinza-carvão, também o olhar cansado do cidadão apressado em deixar a metrópole ruidosa o faz insensível ao diferente. Ninguém enxerga nada.

Essa incapacidade de beleza, essa estoica afirmação do funcional e essa negação contínua do individual me exasperavam às vezes: A cidade ao meu redor não é bela senão enquanto paisagem vista de longe. Não é bela aqui n'essa esquina escura cercada de prédios altos e cinzentos. Sem embargo, dou-me conta que essa impessoalidade é mais justa e realista que a assinatura de algum mestre do desenho. Sim, a cidade ao meu redor é matéria modelada por milhões de pés e mãos, não pelo gênio de um só. Quem quiser ver a arte do indivíduo, não será aqui. Ei-lo: O prédio colorido e ousado que causou espécie em minha juventude hoje passa quase desapercebido após envelhecer como eu... Mal se distingue dos demais para evocar qualquer lembrança de seus ideadores. Está ali, mas não estava até eu parar para vê-lo coberto pela mesma poeira cinza que o fez semelhante ao cubo de concreto armado que lhe ladeia. 

É esse espetáculo do indistinto que a cidade ao meu redor me oferece. Eu me sento na guia da calçada e aplaudo.

Belo Horizonte - 20 04 2018

quinta-feira, 26 de abril de 2018

LAMPEJOS

LAMPEJOS

Eu pouco a pouco volto à realidade.
Ao acordar, lamento antes o sonho perdido,
Que o sono bruscamente interrompido:
Sim, outra sensação pela metade...

É bem como se alguma alteridade
Se colocasse diante do sentido
E me perdesse vago em meio ao Olvido,
Ao quase revelar d'uma verdade.

D'olhos abertos, cerra-se minh'alma.
Permanecem imagens interiores...
Talvez reminiscência ou mesmo trauma.

Já segue o quotidiano e seus rigores.
Ainda qu'eu, por sob a face calma,
Passe o dia à procura d'esplendores.

Betim - 26 04 2018

quarta-feira, 25 de abril de 2018

SÍRIO-LIBANÊS - Des-História Universal

SÍRIO-LIBANÊS

Quando a guerra tornou-se realidade
Despatriar-se foi a única saída.
Por ironia, quem lhe deu guarida
Chamava-lhe de "turco"... Na verdade,

Tomaram d'ele até a identidade
Para que então seguisse sua vida.
Aqui, a sua guerra foi vencida
No trabalho, não na insanidade.

Hoje em dia, no campo damasceno
De novo vê-se a guerra e seu veneno
Como há séculos tem acontecido.

Entretanto, tamanha é a mudança
Que essa terra que fora d'esperança
Também agora o deixa desvalido.

Betim - 25 04 2018

LUSO-BRASILEIRO - Des-História Universal

LUSO-BRASILEIRO

Assim como a cor d'olho não colore
Aquilo que o olho tem à sua frente,
Tampouco a cor da pele ao que se sente
Altera o quanto ria e o quanto chore.

Não me queiram, portanto, que deplore
A língua como força d'essa gente
Na voz de quem não cala e não consente
E à luz de quanto a mente rememore.

Ao contrário, mestiço que sou eu,
Reconheçam pela híbrida linguagem
O vernáculo audaz do verso meu.

Pois certo de que não tão bom selvagem
-- Cujo belo paraíso se perdeu... --
Transmito mais além minha mensagem!

Betim - 24 04 2018

segunda-feira, 23 de abril de 2018

AFRO-AMERICANO - Des-História Universal

AFRO-AMERICANO

Terra da Liberdade, a Norte-América
Tornou republicana a escravidão:
A todo "homem de cor", honesto ou não,
Fez a face da lei sempre colérica.

A livre iniciativa, algo quimérica,
Se lhe parece ao fim a exploração
D'esse país que se crê grande nação,
Embora a negra face cadavérica...

A África qu'ele traz em sua pele
E a América qu'ele tem por sob os pés
Inconciliáveis são aos olhos d'ele.

Mas, a um só tempo síntese e revés,
A sua resiliência ao fim revele,
Da História dos vencidos, o outro viés.

Betim - 23 04 2018

FRANCO-CANADENSE - Des-História Universal

FRANCO-CANADENSE

Desenharam um país de costa à costa
À revelia então de quem se importe:
Era a província entregue à própria sorte,
Enquanto d'além-mar buscam resposta...

A paz que pelas armas foi imposta
Por britânicos e yanques lhe conforte
Se nem a independência e nem a morte
À suave flor-de-lis por fim desgosta.

O grande norte branco se conquista
A partir da corrida imperialista
À Passagem Noroeste indescoberta!

Mas a gente que estava no caminho
Em face de interesse tão daninho
Da própria identidade viu-se incerta...

Betim - 22 04 2018

quinta-feira, 19 de abril de 2018

GRECO-ROMANO - Des-História Universal

GRECO-ROMANO

Os deuses se confundem nas histórias
Dos povos que se fundem n'um só povo:
O vencedor se vê como o renovo
Capaz de reviver antigas glórias.

De modo que se veem premonitórias
As conquistas do velho para o novo...
No afã de descrever tudo de novo,
E ao fim prevalecer por tais vitórias.

A civilização assim transita
D'um povo que melhor se lhe acredita
Para o povo que maior se compreende...

O que resulta d'isso, por Cultura
Se traduza em vã nomenclatura,
Enquanto um mito n'outro além s'estende.

Betim - 19 04 2018

quarta-feira, 18 de abril de 2018

JUDAICO-CRISTÃO - Des-História Universal

JUDAICO-CRISTÃO

O Deus de Judá reina sobre a Terra
Como se uma consciência colectiva!...
E o respiro de cada coisa viva,
Creem que de seu espírito algo encerra.

Deus d'exércitos sim; Senhor da guerra,
Em seu nome vêm ter com mão ativa
Os corações e as mentes à deriva,
Indiferentes se Ele existe ou se erra:

A ferro e fogo, todos os gentios
Fizeram batizar em turvos rios
Como fizera Cristo entre os judeus.

Foi assim que passadas eras plenas
Ao deus desconhecido, desde Atenas,
O Ocidente O elevou a único Deus...

Betim - 18 04 2018

terça-feira, 17 de abril de 2018

ANGLO-SAXÃO - Des-História Universal

ANGLO-SAXÃO

O macho adulto branco anglofalante
Tão claramente enxerga o mundo todo,
Que pouco ou nada toca de seu lodo,
Enquanto lhe consome especulante.

O lucro -- funcional ou exorbitante --
Lhe alimenta os instintos, sobremodo
Quando sabe vender algum engodo,
Cuja cotação segue a cada instante.

O mérito, decerto desde o gene
Traduz-se na indecência tão solene
Da fortuna que há séculos ele herda.

Pois, se o sucesso mede-se em dinheiro,
Tão claramente enxerga o mundo inteiro,
Que pouco ou nada toca de sua merda.

Betim - 17 04 2018

OS OUTROS - Crônicas d'anteontem

OS OUTROS

Sim, agora que estamos apenas nós aqui, podemos falar d'eles: Coitados, tão estúpidos... tão simplórios... tão idiotas... Nós, que não somos como eles, é que sabemos a verdade! Como eles não sabem? Quando vão se calar e fingir que concordam conosco? Afinal, temos méritos intelectuais inquestionáveis e sistemas filosóficos inteiros! E eles, oras!...

Quem eles pensam que são? Eles pensam? Doutrinados que foram para repetir frases feitas e acreditar em historinhas infundadas!... Ao contrário de nós, que temos verdades sólidas e perfeitas, mas, justamente por isso, universais: Servem para tudo e todos! Ai d'aqueles que não entendem!... Como podem se cegar diante dos factos que elencamos e, sobretudo, da força de nossas convicções?! Até quando serão escravos de ideias alheias? Até quando se submeterão às ideologias apressadas ou aos maniqueísmos primários que os líderes vociferam continuamente?! A propósito, seus líderes: Que ridículos! Matéria para caricaturas! Contradições ambulantes, tangem feito gado a massa buliçosa...

Que espetáculo patético! Quanta manipulação interessante-interesseira! Quantos pseudo-pensadores!!!

Os outros estão lá e nós aqui. Entre iguais, falamos e somos compreendidos: Todos como um! Democracia?! O exaustivo debate com quem só escuta a si mesmo e contra-argumenta lugares comuns me esgota: Falar, discutir, parlamentar... É inútil! Muito mais produtivo impor nosso ponto de vista e eliminar as contradições, internas ou externas.

O curioso é que, saindo d'aqui, nos misturamos... Na multidão da metrópole, parecemos todos iguais: As cores simbólicas dão lugar às roupas do dia a dia. Difícil dizer quem é isto ou aquilo: Coexistimos.

E, embora não concordemos em quase nada, nossa humanidade nos exige ao menos a consciência de nosso destino comum, isto é, a morte. Ah, que excepcional a condição humana... Não basta aos homens morrer: É preciso viver tendo consciência de quão breve pode ser a vida!...

Talvez não sejamos, nós e os outros, tão diferentes assim.

Mas, o que estou dizendo? Onde estão os nossos princípios? Onde estão os nossos hinos e bandeiras? Onde as nossas palavras de ordem! Não devemos baixar a guarda jamais!

Pelas palavras ou pela força, venceremos!

(Mesmo que vitória provisória à espera da próximo entrevero...).

Betim - 15 04 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

AURA EXTENSA (sextilhas)

AURA EXTENSA (sextilhas)

Estender-se no que se tem
Faz um homem maior do que é --
Quer lança que estica além
O braço e mais longe até; 
Ou alavanca que, com fé,
Movesse o mundo também.

Assim, n'aquilo que se usa
Todo ser s'estende todo:
É cheiro que impregna a blusa;
É calor em pleno denodo
A arder em torno, de modo
Que a aura nas armas inclusa!

Como se a pessoal energia
Em vibrações oscilantes
S'expandisse, todavia,
Pelas coisas circunstantes
Para além do que eram antes
Pois pessoais em demasia.

Visto demasiado humanas
As coisas depois de usadas:
Se a princípio mundanas,
Pelo corpo desgastadas
São enfim humanizadas
À luz d'auras soberanas.

É chamado de "aura extensa"
Este estender-se do ser
Nas coisas a que dispensa
Um extremado prazer
Ou as agruras do afazer
Por sobre a matéria densa.

O imaterial na matéria
Como restos da existência,
Sua opulência e miséria
Confessa na permanência
Uma presença na ausência
Durante a ação deletéria.

E a vida que ali resiste
Depois que a vida se deixa
É a memória que insiste,
Indiferente da queixa
Que em meio às flores enfeixa
Lamúrias d'um luto triste.

É a verdade da vida
Que se nega ao vão d'Olvido!
É, talvez, a despedida
N'um detalhe percebido
Pelo coração partido
Diante de sua partida.

É a luz que permanece
Depois que o sol já se pôs.
E, pouco a pouco, anoitece
Nos versos que se compôs
Quando -- filhos, pais, avôs... --
O homem dos homens esquece.

É, enfim, tudo que se haura
Expresso em luz e revolta,
Enquanto a mente desaura
N'um clarão à sua volta
O ser que de si se solta 
Quão extensa for sua aura...

Betim - 16 04 2018

domingo, 15 de abril de 2018

PERTENCES

PERTENCES

Algo que permaneça d'aura extensa
Como essência invisível dos objetos,
Em meio à ausência faça-se presença.

Pelo uso nos indique 'inda pertença,
Em memória de dias irrequietos,
Algo que permaneça d'aura extensa.

Desgastadas relíquias d'uma crença,
Onde os dedos premiram, inquietos...
Em meio à ausência faça-se presença.

Alguma fé absurda-mas-imensa,
A fazer-nos abstratos mais concretos...
Algo que permaneça d'aura extensa.

Atravesse do Olvido a noite densa
A fim-de que a saudade dos diletos
Em meio à ausência faça-se presença.

Em tudo que estivemos nós, pretensa
Luz que ressignifique ora amuletos,
Em meio à ausência faça-se presença
Algo que permaneça d'aura extensa...

Betim - 15 04 2018  

sábado, 14 de abril de 2018

BRAVÍSSIMO!

BRAVÍSSIMO! (rondel octossílabo)

Queres aplausos? Não os tenho.
A árvore de louros secou...
Escreves tu com arte e engenho
Poemas que o século ignorou.

Poeta, o teu século passou!
Baldo é poetar com tanto empenho.
A árvore de louros secou...
Queres aplausos? Não os tenho.

Poeta, o teu século desdenho:
Ouro de tolo, enferrujou...
Baldo é poetar assim ferrenho.
A árvore de louros secou...
Queres aplausos? Não os tenho.

Betim - 14 04 2018

sexta-feira, 13 de abril de 2018

AUTÓFAGA

AUTÓFAGA
(sextina: fome, carne, pele, mente, toque, mesma)

Das entranhas lhe vem estranha fome
Que lhe consome toda a sua carne.
Frêmitos de sentir-se à flor da pele
Lhe agitam os desvãos da vaga mente
Ao perceber-se entregue ao próprio toque,
N'uma exploração húmida em si mesma.

Os dedos que percorrem a alma mesma
Têm no êxtase o saciar d'aquela fome
Certa de que, no corpo, o ser se toque.
Assim, a aura que envolve a nua carne
Revele-lhe os recônditos da mente
Em seu dedilhar de harpas pela pele.

Exsude todo o ser por sobre a pele
E, entorpecida, saía de si mesma
No alheamento de quanto tinha em mente.
Autófaga, de si sentia fome...
Era o saciar da carne pela carne
Ao s'entreter consigo em suave toque.

Das entranhas se vê estranha ao toque
Que lhe provoque ardor em toda a pele
E lhe revele a si apenas carne...
Não obstante, perceba-se ela mesma
Como fome de si a sua fome
A ponto de absorver de todo a mente.

Incerta se de pele ou se de mente
Sua explosão de si àquele toque;
D'ela trazer consigo tanta fome.
Incerta se de mente ou se de pele,
Resta-lhe conhecer-se ora a si mesma
No afã de se sentir na própria carne!...

Mas saiba-se na fome em sua carne,
-- O que for: seja pele; seja mente --
Ser ela toda ao toque d'ela mesma.

Betim - 13 04 2018

GESTUAL

GESTUAL

Vontade d'expressar tudo sem falar nada
E n'algo inconsequente, igual um soco no ar,
Pôr tamanha energia onde fosse esmurrar
As fuças do sujeito atrás da papelada!...

Sem embargo, traduza a minha dor calada
N'um acesso tão amplo quanto sem lugar...
Como protesto eu fique a lhe gesticular
Com fúria me chispando ainda a má mirada.

Pareça-lhe agressivo ao passo que, agredido,
Consigo me indignar n'esse gesto incontido
Contra quanto me cala e me oprime e me aliena.

Eu, todavia, expresse algo quase inumano
Como explodisse então, pouco republicano,
Sem lhe verbalizar sequer palavra plena...

Belo Horizonte - 10 04 2018

quinta-feira, 12 de abril de 2018

A BANHAR

A BANHAR

O bulício das águas contra as lajes
Ao descer os degraus da corredeira...
Aonde eu te levei por companheira
A nos havermos sem pejo nem trajes.

Não importa por onde ou com quem viajes,
Jamais encontrarás igual ribeira!
Tampouco te verás, aventureira,
Tão mais longe dos vis e seus ultrajes...

Onde toda a nudez jaz inocente
E mulher e homem são naturalmente
Dois bichos a banhar-se em pleno cio.

Guarda no coração aquela tarde,
Cujo recordo ainda em desejo arde
Meu corpo sob as águas d'esse rio.

Santana do Riacho - 12 10 2012

quarta-feira, 11 de abril de 2018

CARÍCIAS

CARÍCIAS Amemo-nos sem pressa, suavemente, Ainda que a cidade a todo instante Se faça com mil sons sempre presente. Olhemo-nos nos olhos, frente a frente: Tudo há-de acontecer ao teu talante... Amemo-nos sem pressa, suavemente. Busquemos o sorriso mais contente, À espera que o prazer no peito arfante Se faça com mil sons sempre presente. Porque doce é o amor quando se sente O rosto aberto em gozo d'uma amante: Amemo-nos sem pressa, suavemente... E, alheados do que tínhamos em mente, Teu corpo no meu corpo d'oravante Se faça com mil sons sempre presente. Assim talvez o amor -- tão inconstante... -- Se faça com mil sons sempre presente Até que em nós o gozo se agigante!... Amemo-nos sem pressa, suavemente... Belo Horizonte - 10 04 2018

terça-feira, 10 de abril de 2018

DON'ANA (sextilha)

DON'ANA (sextilha)

Era uma mulher do lar;
D'aquelas para casar
E que se quer sempre sua.
Que sabe bem seu lugar,
Pois, tem recato no andar
Quando passa pela rua.

"Don'Ana" tinha por nome
E um desejo que a consome
Desde quando pequenina.
Senhora sem sobrenome,
De ser alguém tinha fome:
Só p'ra casar se destina.

Noiva, era muito feliz,
Tendo tudo o que quis
Porque sempre do seu lado.
Por fim, para todos diz:
-- "A minha sorte eu que fiz,
Depois de tê-lo encontrado..."

Sim, entre quatro paredes,
Ei-la sem sedas e suedes
Em face d'ele despida.
E cheia de fomes e sedes,
Tal como sereia nas redes
Deixava-se ser possuída.

Era no mundo uma dama,
Mas uma puta na cama,
Tendo-se melhor mulher,
Do que quem no mundo puta
E na cama só computa
O quanto ou quando querer.

Mas, para sua surpresa,
Era bem da natureza
Do seu noivo, de primeiro,
Na mais pura safadeza
Após deixar a princesa,
Ir pernoitar no puteiro:

Contam à boca pequena
A alguma vaga morena
As visitas do seu amor...
Que sentiam até pena
Da noiva que ele apequena
Por não se lhe dar valor.

Que não o deixava em paz,
Dando-se como lhe apraz
E quando se lhe convém.
Vivia lhe andando atrás...
Mas, tanto fez; tanto faz:
Logo há-de passar também.

-- "Don'Ana é quem é Senhora!" --
Diziam cidade afora
-- "As outras, só vêm e vão..."
D'ele mais s'enamora
Havendo em conta que mora
Dentro do seu coração.

E, mais dia, menos dia,
Quem se deu tal ousadia
Mal s'engana de que a engana.
Há-de vê-la, todavia,
Desfilando fidalguia:
-- "É aquela que é Don'Ana!"

Belo Horizonte - 10 04 2018

segunda-feira, 9 de abril de 2018

UBÚNTU

UBÚNTU

Não adormeças sobre os teus anseios,
Tampouco deixes sonhos embotados.
A solidão ligeira faz passados
Os princípios e os fins quando sem meios.

Andaste tu perdido em devaneios
A ver como se d'olhos já vendados...
Não julgues de antemão desencontrados
Tanto os desejos teus quanto os alheios.

Desde que o mundo é mundo, as pessoas
Têm para si razões sempre tão boas
Que nos outros não veem senão conflitos.

Se, contudo, a verdade se partilha
Crescer co'os outros é a maravilha
Que faz os nossos dias mais bonitos.

Belo Horizonte - 05 04 2018

sexta-feira, 6 de abril de 2018

EM SÉPIA

EM SÉPIA

Atravessava o largo sob garoa
Abrigado de chapéu e sobretudo.
Quando, entre surpreendido e mudo,
Em sépia figurou sua pessoa.

Sim, um clarão vermelho lhe destoa
O reflexo dos óculos. Contudo,
Causava espécie o rosto 'inda desnudo
Onde um jovem artista se apregoa.

Registo d'um momento interrompido,
Apenas d'entretons foi colorido
Na exposição do filme àquela luz.

Mas a imagem fixada mais provoca
Pelo monocromático que evoca
Bela época a que dândis fazem jus.

Betim - 06 04 2018

quinta-feira, 5 de abril de 2018

POR ENGANO

POR ENGANO

Cumprimentou-me sem saber quem era.
Acenava, sorrindo-me sem graça.
Há tempos não o via e n'uma praça
Calhou de reencontrá-lo: -- "Besta-fera!..."

Com efeito, das brumas da quimera
Retorno balbuciando uma chalaça.
E, antes que da surpresa se refaça,
Pede-me um adjutório e fica à espera.

Recordo-me do amigo qu'ele fora
No tempo qu'eu o tinha como amigo
E da distância havida vida afora.

"Mas que cara de pau!" -- pensei comigo --
"Nem se lembra de mim". Digo-lhe, embora:
-- "Perdão, foi por engano." -- e fui embora.

Belo Horizonte - 25 03 2018

quarta-feira, 4 de abril de 2018

EM FALSO (décimas)

EM FALSO (décimas)

Há quem se faça de bobo,
Fingindo-se o que não é.
Cordeiro em pele de lobo,
Deseja a fama de probo
Como se digno de fé.
Mas, demasiado pedante,
Fala do que não entende.
Mais do que é se pretende,
Visto o seu ego gigante
Face às luzes que acende.

Por inteiro interesseiro,
Aplaude a ser aplaudido.
Lobo em pele de cordeiro,
Nas letras busca dinheiro
E um nome a fugir d'Olvido.
Sem embargo, é infeliz
Em tudo aquilo que escreve:
Frases de incerto cariz
Mal dissimulam as vis
Intenções que sempre teve.

Do nada ele me procura
Já se dando liberdade:
-- "A mim parece loucura
Tua intrigante figura
Dizendo não ter vaidade..."
Sabendo-o querer barulho,
A ele respondo sem dó:
-- "Deveras, muito me orgulho...
Da minha falta de orgulho
Haja vista ser eu pó".

-- "Se uns pecam por ser demais,
Outros, por querer de menos..."
Argumenta em tons desleais
No afã de parecer mais
Face a meus olhos serenos.
De repente, ele s'exalta
E me aponta os senões todos,
Restando-me a fala incauta:
-- "Antes ter orgulho em falta
Do que ter falta de modos!"

Finalmente ele se afasta
Sem m'entender patavina.
Volta para a sua casta,
Cujo aplauso bem lhe basta,
Enquanto mais se amofina.
Talvez sob monge descalço
Outro impostor se revele
De pé sobre o cadafalso!...
Quem a seguir cai em falso,
Eis lobo e cordeiro em pele!

Betim - 03 04 2018

terça-feira, 3 de abril de 2018

MALFADADO

MALFADADO (fado)

Todo dia o dia todo,
Ando contrariado
Por saber-me d'algum modo
No amor malfadado...
Tanto que nem me incomodo,
Quando dá errado.

Eu mais dia, menos dia
Desisto de tudo:
Qualquer mínima alegria,
D'amor sobretudo,
Me põe em má companhia
E eu me desiludo.

Tal e qual jogo d'azar
Outro amor em vão
Me fez quase acreditar...
No fim, bem ou não,
Tão-só soube revirar
O meu coração.

Todo dia o dia todo,
Ando contrariado
Por saber-me d'algum modo
No amor malfadado...
Tanto que nem me incomodo,
Quando dá errado.

Betim - 02 04 2018

domingo, 1 de abril de 2018

NAS NUVENS

NAS NUVENS

Tenho elevado versos às alturas
Sem desejar senão frases honestas,
E responder angústias tais como estas
Que atravessam as noites mais escuras

Indiferente a vãs nomenclaturas,
Não cuido se poesias imodestas
Em árvores de arquivos ou florestas
Guardiãs de digitais multiculturas.

Tão-só espalho alhures quanto tinha
Sempre a se acumular na escrivaninha
Em maços de papeis sem mais vaidades.

Mas... Feliz de quem topa em meus escritos
E os lê com prazer porque bonitos...
Ou os lê com ardor porque verdades!

Betim - 01 04 2018